abril 08, 2015

MEMORANDO DE UMAS SOMBRAS

Termina o dia. O melro, a mulher e as sombras repartem
entre si o que resta. Ela dança, preparar a mesa,
como em redor de Vesta. O melro, a olhar o sol vago,
escolhe a folhagem densa para cumprir o destino.
Ociosas, as sombras perseguem gestos e as formas.

Fiama Hasse Pais Brandão, Epístolas e Memorandos,
Relógio d'Água, Lisboa, 1996, p.27

abril 05, 2015

EPÍSTOLA PARA UM CARAMANCHÃO COBERTO

Nesse caramanchão que a madressilva cobriu
sempre estavam mais sombras do que corpos ou coisas.
A sombra de alguém que se sentasse junto aos vasos
estendia a mão nítida para uma flor de sombra.
Dançasse uma criança em volta do pequeno lago
no centro, e havia uma espiral de sombras claras.
Solitário, na própria sombra, o gato era um corpo
penando a dualidade de ser e de não ser.
Até a pá do jardineiro, linha de sombra oblíqua,
por ser de sombra se quebrava em ângulo.
Não porque todos não estivéssemos em vida ali
mas porque a madressilva, só ela, se embebia de luz.

Fiama Hasse Pais Brandão, Epístolas e Memorandos,
Relógio d'Água, Lisboa, 1996, p.22